“Foi um remedinho que eu tomei!”
Vanusa – mais conhecida, ultimamente, como mãe de ex-participante de reality show – pagou um mico homérico essa semana assassinado cantando o Hino Nacional de uma maneira, digamos, nada digna. A coisa já começou mal e foi ficando cada vez pior, culminando numa mistura de Tiririca com Cana-Brava cantando “risonho e límpido” em ritmo de bolero. A cantora alegou, no dia seguinte, estar sob efeito de remédios para labirintite.
Há diversos outros casos de celebridades e afins que saíram por aí fazendo estripulias por estarem fora de seu estado normal, sem consciência do que faziam. Mas claro, a culpa não era delas, “foi o remedinho que eu tomei!”. Lembra do Vanucci no final da Copa de 2006, enrolando a língua e fazendo um discurso completamente desconexo? Havia tomado um ansiolítico chamado Lorax, e “acidentalmente” bebido um copo de vinho no almoço. Será que substâncias psicotrópicas e outros remédios podem, mesmo, fazer com que uma pessoa cometa isso:
Vejamos algumas substâncias de uso mais ou menos comum, vendidas legalmente em farmácias, e o que elas podem fazer aos incautos consumidores.
- Vertix: suspeito n° 1 no caso do assassinato do Hino Nacional. É o nome comercial do Dicloridrato de Flunarizina, usado para combater alterações de memória e de concentração causados por distúrbios circulatórios cerebrais e, de quebra, vertigens, tonturas e labirintite. O princípio ativo bloqueia seletivamente a entrada de Ca++ nas células. Quando há muito Ca++ entrando numa célula da parede vascular (que é feita, pasmem, de músculos), ela fica com uma carga positiva muito grande, enquanto o lado de fora fica com a carga bem menor, porque a cada Ca++ que entra na célula, ela cospe um K+. Essa diferença de potencial entre o interior e o exterior das células faz com que os músculos que formam as paredes das veias se contraiam, dificultando a passagem do sangue, aumentando o esforço que o coração tem que fazer para bombeá-lo e atrapalhando a irrigação dos tecidos. É o que chamamos de pressão alta.
O remédio impede todo esse processo, ou seja, diminui a pressão no cérebro e periferias, evitando o aparecimento de sintomas como vertigem ou perda de memória. Devido a essa queda razoavelmente brusca de pressão no Sistema Nervoso Central, a substância pode causar sonolência e a bula do remédio indica que se deve tomar cuidado ao dirigir ou operar máquinas. Nada sobre cantar o Hino Nacional. Uma das possibilidades de que o Vertix provoque aquele efeito de perda de controle muscular é a interação com álcool ou com remédios depressores do SNC, como ansiolíticos e antidepressivos. (Ô, Vanusa: tomar remédio pode, dear. Não pode com as três doses de Tatuzinho pra fazer ele descer, viu?)
- Lorax: o vilão da história do Vanucci. Nome comercial do Lorazepam, substância do grupo dos benzodiazepínicos. Ou seja, já deu pra perceber que não é um remedinho qualquer, né? Os benzodiazepínicos são um grupo de substâncias usadas como tranquilizantes, reguladores de sono e para o controle da ansiedade. Especificamente, o Lorazepam é indicado para casos de ansiedade associada a depressão. Também usado em pacientes com quadro psicótico e com depressão intensa. Combinado que isso NÃO É uma balinha, ok? A bula do remédio tem uma lista de precauções imensa, ele é de uso restrito e só pode ser comprado com a receita médica (o famoso “tarja preta”). A lista de reações adversas que os benzodiazepínicos podem provocar é singela, mas assustadora: sedação, tontura, fraqueza, instabilidade e, mais raramente, manifestações autonômicas (tiques e movimentos musculares involuntários), irritação, desorientação e alucinações. Além disso tudo, remédios desse grupo causam dependência quando usados por muito tempo ou em doses altas.
O que a substância faz, basicamente, é parecido com que o álcool faz no SNC. Embora não se saiba exatamente como o Lorazepam age no organismo, provavelmente ele interage com um neurotransmissor chamado GABA (ácido gama-aminobutírico, mas em inglês), potencializando sua ação. Esse fulano é conhecido por ser um neurotransmissor inibitório, ou seja, ele diminui a atividade dos sistemas em que está presente, porque diminui a ativação dos neurônios. Por isso, quanto mais ativo está o GABA em um sistema neuronal, menos esse sistema irá trabalhar, assim, temos diminuição de movimento, sedação, sonolência, etc. Como a ação do GABA é específica para cada lugar em que ele é liberado no sistema nervoso, fica difícil prever qual vai ser o efeito do remédio. Por isso os médicos vão introduzindo a droga aos poucos e verificando quais os comportamentos que o paciente apresenta. Você é a cobaia, meu amigo.
Quando associado ao álcool, o Lorazepam tem sua ação ainda mais fortalecida. Imagine o estrago que isso pode causar. Aliás, imagine não, veja:
É claro que esse medicamentos são usados porque há quadros clínicos em que o efeito benéfico do remédio supera, e em muito, os efeitos colaterais. Quando indicados e acompanhados pelo médico, e usados corretamente, essas substâncias são muito úteis e tornam a qualidade de vida de pessoas com quadros psiquiátricos muito melhor. Não estou aqui fazendo uma pregação contra o uso de psicofármacos e afins, apenas tentando demonstrar como eles funcionam e porque, quando não há necessidade, eles são tão deletérios. O que parece que era o caso dos caros colegas que serviram de exemplo aqui. Ambos tomaram remédio por conta própria, e saíram por aí fazendo estragos em suas carreiras. Quando aprenderem que pílula nenhuma vai trazer felicidade se seus comportamentos não mudarem, pode ser tarde demais. Aprende!